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Vivendo a cidadania planetária em tempos de pandemia - por Cristina Lage
outubro de 2020

Estamos a bordo do Titanic. Colidimos com algo destruidor. Estamos em meio à escuridão da noite. Não conseguimos desviar, não conseguimos prever ou enxergar a ameaça. Somos confrontados com a realidade: centenas, milhares, talvez milhões morrerão. Reagimos de forma diferente, temos comportamentos diversos. Muitos se preparam, se unem, se ajudam. Outros, porém, negam, não querem ver as consequências do desastre. As pessoas não enxergam um palmo à sua frente, sua visão está bloqueada por um véu negro, nefasto, que as impede de serem humanas. Parece que a escuridão não vem da noite, mas sim das mentes. Muitos agem de forma egoísta e irresponsável e crêem que sua posição social e econômica os salvarão. Outros fazem o que podem e lutam por sua vida e pelas vidas daqueles que estão no mesmo barco. O final, porém, é trágico e o colapso é inevitável.

Esse não é um filme, é o Pandemic: a história de um país que naufragou, uma paródia do filme Titanic que retrata o Brasil de 2020. A metáfora para o que estamos vivendo nos dias de hoje, capturada de forma magistral por um Youtuber (assista ao vídeo aqui), me fez refletir muito a respeito do que estamos enfrentando atualmente. Nele, Rose, a personagem principal, de forma retrospectiva, como no filme, narra os acontecimentos 84 anos depois que o país enfrentou a COVID-19. Nessa história, o iceberg que destruiu o barco é o coronavírus, o colapso do barco representa o colapso do nosso Sistema Único de Saúde e o naufrágio simboliza o futuro obscuro ao qual nosso país está fadado.

A metáfora é mesmo poderosa: estamos todos no mesmo barco em meio a águas turbulentas e tempestuosas. Vivemos um momento em que parece que o naufrágio é iminente após colidirmos com um iceberg devastador. Podemos, no entanto, fazer algo para que, no final, não nos afoguemos? Que tipo de cidadão poderia contribuir para que o maior número de pessoas a bordo desse nosso Titanic se salve? Para Edgar Morin, a cidadania planetária pode trazer respostas a essas questões.

Segundo Morin (2007), a cidadania planetária é entendida como uma nova perspectiva civilizatória que requer uma reorientação da nossa visão de mundo. Para o autor francês (MORIN, 2007), o cidadão planetário reconhece que vive em um mundo globalizado, mas não vive uma globalização perversa, que escraviza e inferioriza, que passa como um rolo compressor sobre as culturas. Ele vive uma outra globalização, que é minoritária e começa de dentro para fora, considerando que todas as culturas têm suas virtudes e qualidades. A fim de distinguir essas “duas globalizações” Morin (2003a, p. 63-64) utiliza um outro termo, a “planetarização”. Para o autor, a globalização, por um lado, possui uma abordagem dominadora, colonizadora e unidimensional que, normalmente, engloba as dimensões econômica e tecnológica. O conceito de planetarização, por outro lado, consiste em uma visão multidimensional que expressa a inserção simbiótica da humanidade na Terra. Possui uma orientação humanista, emancipadora e portadora de uma consciência comum da humanidade. Ademais, Morin defende que trata-se de um termo antropológico, pois considera a relação do ser humano com a natureza e o planeta, uma relação que não pode ser concebida de modo reducionista ou separado, como se depreende do conceito de globalização.

Viver a cidadania planetária é ser portador dessa consciência comum da humanidade. É saber que se o barco colidiu em um iceberg, não podemos atirar nos tripulantes para roubar-lhes os coletes salva-vidas. É saber que não podemos sair como rolos compressores para chegarmos aos botes primeiro a fim de salvar nossa própria pele. É saber que não podemos, também, abandonar o barco e pular na água congelante ao encontro de um desfecho trágico. Viver a cidadania planetária em tempos de pandemia consiste em nos apoiarmos em três pilares: pertencimento, solidariedade e responsabilidade.

O senso de pertencimento refere-se a um entendimento de que, a despeito da extrema diversidade das culturas humanas, possuímos uma identidade humana, universal e comum (MORIN, 2003b, p. 72-73). Precisamos, a despeito das nossas diferenças intrinsecamente humanas, desenvolver um senso de unidade dentro da diversidade humana. O reconhecimento da identidade comum gera um sentimento de pertencimento ao planeta que nos é comum, o que nos permite nos concebermos como humanidade, nos permite religar. É o senso de pertencimento que nos faz sentir parte do todo, nos faz entender que somos todos tripulantes da mesma embarcação em direção ao mesmo destino, não importa se estamos na primeira ou terceira classe.

Justamente devido a esse senso de pertencimento, que expressa o sentimento de identidade a uma comunidade ou nação, é que o cidadão planetário se sente impelido a agir de forma responsável. O cidadão planetário é um sujeito que age com responsabilidade, pois percebe “as relações de inseparabilidade e inter-retroação entre qualquer fenômeno e seu contexto e de qualquer contexto com o contexto planetário” (MORIN, 2003a, p. 108). É um sujeito capaz de compreender que é, simultaneamente, parte e todo e que suas ações locais reverberam em âmbito global. Ele ajuda a organizar a fila para entrada no bote, conta o número de coletes salva-vidas e, ao perceber que não é o número suficiente para salvar todos, ajuda a pensar em alternativas. Ele abre as portas dos quartos e chama todos os tripulantes, salva sua própria vida não porque pensa somente em si, mas porque sabe que se permanecer vivo poderá contribuir para que o barco permaneça navegando até que encontre um porto para atracar com segurança.

Agir com responsabilidade, para o cidadão planetário, não é um fardo, uma obrigação de “salvar o próximo”. É aí que a solidariedade se faz presente. Uma solidariedade que não se origina a partir de convenções ou normas, mas que emerge como forma de resistência à exploração. Nas palavras de Morin (2003a, p. 86), trata-se de

(...) uma solidariedade concreta e viva, de pessoa a pessoa, de grupos de indivíduos a pessoas, de pessoas concretas e grupos. Uma solidariedade que não depende de leis nem decretos, que seja profundamente sentida. A solidariedade não se pode promulgar per se, mas podem ser criadas condições de possibilidade para libertar a força de vontade de muitas pessoas e favorecer as ações de solidariedade.

Nesse barco, os cidadãos planetários têm suas ações pautadas pela igualdade e justiça e seu agir solidário parte de dentro para fora. O sentimento de religação é o que nos impele a agir de forma solidária e nos inspira a oferecer ao mundo o que temos de melhor. O agir solidário nos move a distribuir coletes salva-vidas, a tocar na banda, a colocar o menino perdido no colo.

Viver a cidadania planetária em tempos de pandemia requer o exercício da consciência do destino, da identidade e da origem comum de toda a humanidade. Viver a cidadania planetária nos confronta com a necessidade de, como afirma Moraes (2019, p. 43), aprender a “sermos terrenos” e compartilharmos a vivência comum do planeta. É uma nova atitude perante à vida que requer uma tomada de consciência cidadã transfronteiriça e transcultural (MORIN, 2003a, p. 88). Viver a cidadania planetária nos dias de hoje é se sentir um tripulante do barco que se sente responsável por sua navegação e age pelo bem comum da embarcação. Esse é o cidadão da era planetária que fará o que estiver ao seu alcance para não testemunhar a história de um país que naufragou.


REFERÊNCIAS

MORAES, M. C. Saberes Para Uma Cidadania Planetária. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2019.

MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand, 2003b.

MORIN, E. As duas globalizações - Complexidade e comunicação: Uma pedagogia do presente. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007.

MORIN, E; CIURANA, E; MOTTA, R. D. Educar na Era Planetária - O pensamento complexo como método de aprendizagem no erro e na incerteza. São Paulo: Cortez, 2003a.